terça-feira, 29 de abril de 2008

A Carta Perdida - Parte V - Paulo Costa

Estava sentado ao piano, praticando uma nova melodia. Não queria desapontar ao seu pai, que sempre o elogiava muito quando tocava uma canção completa, sem errar. Gostava muito de fazer com que o seu velho pai sentisse orgulho de seu único filho. A tarde estava quente, típica de verão. Todas as janelas estavam abertas, deixando entrar uma brisa suave que de vez em quando percorria a sala inteira. Ouviu a porta abrir e se fechar atrás de si e então passos. Passos estes que eram inconfundíveis. Eram os passos das luxuosas e lustrosas botas de seu pai. Continuou tocando, sem parar. Conseguiu distinguir, através das sombras que se formavam suavemente na parede à sua frente, que seu pai havia parado bem ali, atrás dele, sempre o observando de cima. Não podia parar, os seus dedos pareciam dançar sobre as teclas. Sentiu os dedos de seu pai entrelaçarem os seus cabelos úmidos, suavemente. Sentia-se um pouco desconfortável agora. Tais gestos não eram muito comuns, vindos de uma pessoa fria e seca como seu pai. Continuou tocando. Agora os dedos de seu pai não mais entrelaçavam os seus fios de cabelo, mas sim, uma das mãos massageava levemente o seu pescoço enquanto a outra descia, por dentro de sua camisa, em direção ao seu peito. A canção parecia ter tomado conta de seu corpo, quase como uma possessão e, ironicamente, possessão era uma palavra desconhecida para aquele pequeno garoto até o fim daquela tarde.

- Monstro! - gritou, chutando a pequena mesa de centro, fazendo voar cinzas e cartas para todos os cantos.

O velho homem, imóvel, envolvido pelas sombras, sentado em sua enorme poltrona, parecia estar rindo, algo como um rosnado ou o último sopro de ar que os seus pulmões, que não pareciam nada bem, poderiam reproduzir.

- Então, você finalmente lembrou... - disse o velho homem, sem poder continuar devido a uma crise de tosse repentina.
- Como pôde fazer aquilo? - disse, levando a sua mão direita para dentro de seu casaco e puxando a sua arma que continuava engatilhada desde o incidente mais cedo, com o garoto. - Seu velho nojento! - exclamou quase como um grito, apontando a sua arma diretamente para o que imaginava ser o peito do velho homem.
- Eu o amei... - disse o velho homem, tossindo mais uma vez.

Aquelas simples palavras atingiram o seu peito como facas, perfurando e penetrando, cada vez mais fundo, como se sentissem prazer, centímetro por centímetro. Lembrou de todos os momentos que passara ao lado daquela pessoa deplorável.

A dor era tanta que não podia suportar. Com a precisão que adquirira nos últimos nove anos, trabalhando como assassino profissional, desferiu um, dois, três tiros, exatamente no meio do peito do seu velho pai. A poltrona, que antes parecia uma barreira de sombras impenetráveis, tombara, fazendo com que a luz iluminasse muito bem o rosto daquela pessoa, que já não lhe trazia semelhança alguma com o que um dia fora o seu pai.

Aproximou-se. Queria certificar-se de que havia feito o que pretendera corretamente. Podia sentir o cheiro de sangue, saindo pelo peito do velho homem deitado aos seus pés e inundando o chão imundo daquele apartamento.
Apontou sua arma com toda a segurança para a cabeça de seu pai. Não queria deixar dúvidas. Atirou.

Virou e começou a andar em direção a porta que havia dado passagem a todo aquele inferno vivido nos últimos minutos. Guardou a arma em segurança novamente dentro de seu casaco, em um gesto automático. Somente ao guardar sua arma, reparou que, amassada em sua mão esquerda, estava a velha carta. Abriu a mão e notou que o lacre vermelho, de cera, havia sido rompido. Colocou sua mão direita, que ainda tremia devido aos tiros, dentro do envelope, e tirou o único pedaço de papel que havia ali. A letra era de sua falecida mãe. Começou a ler.

Querido e amado filho.
Nunca tive a intenção de trazer tal assunto de volta para nossas vidas, mas acredito que como último desejo, possa perdoar o teu pai, que se encontra em situações piores que as da sua velha mãe.
Espero que o tempo tenha curado as feridas causadas pelos atos de um pai doentio.
Perdoe-o.
Com amor, sua mãe.


Dobrou a carta delicadamente, recolocando-a de volta no envelope, virou para trás e arremessou-a em direção ao peito ensangüentado do velho homem.

- Eu te perdôo... - disse virando-se novamente para a porta e agarrando fortemente a maçaneta. - ...papai.

Fechou os olhos e pôde sentir, pela primeira vez em muitos anos, lágrimas escorrendo pelo seu rosto. Lágrimas.

FIM.


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