terça-feira, 13 de maio de 2008

Tradição de Matilha - Parte III - Daniel Pedrosa

- Meu líder, me perdoe. - Sussurrava Dário com uma mordida no lugar que um dia fora sua garganta.

Era quase impossível recordar-se da lembrança de um pelo felpudo e branco ali. A ferida estava espantosa. O sangue jorrava e suas artérias pulsavam para fora. Era realmente um milagre ele ainda estar vivo... E falando.
- Quem fez isso Dário? Interrogava aturdido e confuso o ofegante líder.
-Iúna. Ela comeu... Antes de partir preciso lhe falar...

Agonizando, Dário confessou que Iúna o chamara para as terras a fora do território nativo. Sempre aventureiro, aceitou e partiu com ela nesta arriscada jornada. No aparecer de um caçador humano, Dário o atacou e a protegeu. Mas Iúna avançou no humano e o comeu.

Tomado pela fome e pelo cansaço, Dário também se rendeu a carne humana.
Com o transtorno na floresta, Arísis chegou e o surpreendeu com o humano, enquanto Iúna já havia fugido.

- Ela está bestial... Manáz não vai agüentar...

Arísis não pensava, simplesmente aturdiu-se e correu perdoando Dário, que nesse momento golfava o pouco sangue que lhe restava, deixando a terra tingida com uma poça vermelha. Ouviu os rosnados e sem pensar, saltou pelo arbusto alto que estava em seu caminho, deparando-se, e investindo em sua amada esposa.

Manáz estava esfacelado a cortes feitos com garras afiadíssimas. Mal se agüentava em pé.
Sem demora, Iúna avançou agressivamente em seu líder e marido Arísis, as trocas de golpes eram rápidas e intensas, até que Iúna cegou seu marido em um olho. Apenas ela sabia o dom que Arísis tinha. Apenas ela... Sua cúmplice, companheira, sua vida... Apenas ela sabia sobre seu belo olho azul oceano, em casos de perigo tornava-se verde mata. O que era naturalmente verde, já não mais existia.

Um ódio a consumia por dentro, e Arísis não atacava direito, o único olho que lhe restara transbordava em lágrimas, sua face tinha uma carreira de lágrimas e outra de sangue escorrendo ao mesmo tempo. Manás, seu sábio amigo, mesmo que quisesse nada podia fazer, estava fraco, e como se o vento lhe empurrasse, caiu.

- Eu comi para ficar mais forte. Cansei de ser mandada por machos tiranos!
Cansei de caçar para vocês e não receber nenhuma glória. Fundarei uma matilha de fêmeas que os tornarão escravos!

Arísis não a reconhecia. Apenas tentava ganhar tempo. A cada golpe que o líder defendia, se lembrava dos momentos íntimos, os momentos alegres, seu colo materno que o aconselhava sabiamente, momentos que pertenciam somente a eles, porém, podia ver agora que estes nunca foram os dela e isso fazia com que as lágrimas acompanhassem o sangue que escorria mais rápido agora.

- Não adianta Arísis. Eu estou bem mais forte! - Dizia ela enquanto via o esforço em vão do marido de se libertar e imobilizá-la.

Manáz que respirava fundo, cansado e estendido ao chão, olhava-a profundamente como quem se lembrasse de vidas passadas, e pensava "Que erro eu cometi".
No fundo, Arísis era astuto e se deixava imobilizar de uma vez para um pequeno "bate papo" com aquela que ele um dia acreditou ser amado.

- Antes que acabe com isso me responda algo.
-Diga! Rosnou Iuna ferozmente.
- Nunca me amou? Era tudo mentira?
- Não seja tolo, desde filhote odiava machos, folgados e donos de um poder que não possuem, mas fui esperta, escondi este ódio à vida inteira enquanto criava um plano. Bastaria fazer com que um rei tolo se apaixonasse por mim e o resto viria à tona! Machos, não passam de mero produto reprodutor!

No momento em que ela humilhava seu coração, a matilha havia chegado. Manáz em tom irônico interrompeu sua risada maquiavélica, que pairava no ar como a neblina densa de um pesadelo.

- Se vai matá-lo, faça antes que eles o façam com você.

Ao olhar para trás, Iúna se deparou com o resto da matilha a cercando, todos em guarda, inclusive as fêmeas encaravam-na sem piscar, aproximando-se lentamente. Após a bestialidade que Iúna exerceu, estava cercada, a matilha estrategicamente a encurralou, nem tentara fugir, somente olhava para a matilha, inclusive para Arísis, com um ódio demoníaco. Seu olhar estava em brasas!

Manáz propôs ao seu líder que a banisse, mas apenas após um tempo. Manáz era sábio e viu a lua mudar na noite anterior a morte de Dário, isso era o sinal sagrado da fertilidade.

Iúna esperava um filhote de seu líder e Dário voltaria. Até que isso acontecesse, Iuna seria mantida em cativeiro.

Um tempo depois da carnificina ocorrida, lua crescente dourava levemente o céu. Enquanto Arísis contemplava-a chorando com seu único olho, o que lhe restava. E lembrava-se... Lembrava-se do falso amor de Iúna, o amor que este acreditava ser o mais sincero de todos, que o mantinha tão seguro a ponto de considerar a cicatriz que ficou em sua bela face, um elo com um sentimento puramente ilusório que somente era real de sua parte.

FIM

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